A água e o planejamento urbano: lições da Holanda contemporânea para o Brasil
18 de dezembro de 2017

Dentre os desafios contemporâneos das cidades brasileiras, a questão hídrica é uma urgência. O rápido e enorme crescimento das cidades não foi acompanhado por um aumento proporcional na proteção contra alagamentos e inundações, tampouco por um aumento da qualidade paisagística na relação entre rios e cidades. Rios e córregos continuam sendo canalizados, retificados e concretados; os espaços públicos ao longo de cursos d’água são desqualificados; enchentes e alagamentos continuam um problema.

Mais de 80% dos 200 milhões de brasileiros vivem hoje em cidades, onde devemos concentrar os esforços para um desenvolvimento sustentável. Ainda nos anos 1960, o Brasil era um país majoritariamente rural. Esse enorme e rápido crescimento das cidades gerou um conflito na questão hídrica. Entre as apostas questionáveis, estão as estruturas de drenagem obsoletas; retificação de rios, concretagem das margens e tubulação de rios e córregos; ocupação de áreas de enchentes e alagamentos pela cidade formal e informal.

Considerando as cidades como o habitat humano, e os rios urbanos como uma relação entre natureza e cultura, trazer boas práticas na relação entre rios e cidades é contribuir para o desenvolvimento sustentável das cidades brasileiras.

A Holanda é o delta de diversos rios europeus e a relação com rios, águas subterrâneas, mar e chuvas sempre teve um papel de destaque na formação do território e na urbanização. Esta relação se estabeleceu ao longo dos séculos, se modificou, e continua se modificando nos tempos atuais, determinada por questões econômicas, culturais e na maneira de se enxergar a água. As águas deixaram de ser vistas apenas sob a ótica da funcionalidade, passando atualmente por uma abordagem mais integrada entre os processos naturais e as questões paisagísticas, sociais, de lazer, de recreação, que fazem parte das necessidades humanas.

Dentro de um contexto de mudanças climáticas e um futuro de incertezas, em que as obras tradicionais de engenharia não são mais suficientes para o manejo das águas urbanas, as cidades devem estar preparadas para serem mais resistentes, mais resilientes, e, sobretudo, mais adaptáveis. Conhecer as experiências holandesas nessa direção é aprender lições valiosas para, com a correta contextualização dentro da realidade brasileira, caminharmos para uma relação mais equilibrada entre cidades e rios.

Dentre os projetos em curso na Holanda, três destacam-se pela sua aplicabilidade dentro do contexto brasileiro. São eles: Water Squares, The River as a Tidal Park e Room for the River, como veremos a seguir.

Water Squares – Praças da Água

A riqueza hídrica do nosso país gerou centenas de cidades situadas ao longo dos rios e cursos d’água e a urbanização gera um descompasso no ciclo da água.

O rápido processo de urbanização brasileiro, somado a uma condição de clima tropical com alta precipitação, resultou numa infraestrutura de drenagem obsoleta, que não é mais capaz de gerenciar a quantidade de chuvas que temos no ambiente construído.

A solução tradicional se concentra na recapacitação da estrutura: canalização de rios e aumento do diâmetro da tubulação.

“Mas quais são os valores adicionais que podem surgir de uma visão puramente funcional? A necessidade da gestão hídrica gera também uma série de oportunidades”, questiona Taneha Bacchin, coordenadora do grupo de pesquisa em Urbanismo de Deltas da Universidade Técnica de Delft. “Devemos pensar em atualizar essa estrutura, mas fazê-la sob um novo paradigma, redesenhando o tecido urbano, para armazenar água no espaço, com a união entre o espaço aberto e subterrâneo”.

Em vez de recapacitar a estrutura do modo tradicional, um processo caro, que atrapalha a população (com o fechamento de ruas) e sem apelo político (já que a tubulação fica escondida), ela sugere manter as redes existentes, mas incluir ajardinamento do espaço aberto, áreas de detenção, espelhos d’água – espaços que só serão inundados em caso de necessidade. É um processo de descentralização, incluindo quadras e parcelas que não são mais conectadas à drenagem. “Devemos pensar em estruturas híbridas. Não desconectar tudo, mas incluir espaços abertos”.

Um bom exemplo prático de aplicação desse conceito é o projeto Water Squares, na cidade de Roterdã, Holanda. Tratam-se de quadras esportivas para uso da população, mas que também funcionam como área de detenção de águas, em caso de enxurradas. Até mesmo o desenho e pintura das quadras enfatizam o caráter multifuncional, através de uma pintura em tons de azul, como uma piscina, para que a população reconheça como tal. “É uma bacia de detenção como parte do desenho urbano”, explica Taneha.

A multifuncionalidade da infraestrutura verde e azul deveria ser considerada no Brasil. Agregar a uma estrutura funcional valores ambientais, como áreas naturais e ajardinadas, e valores sociais, como parques e quadras, é também uma solução mais econômica para as cidades brasileiras. Isso é resolver problemas de forma sustentável através do desenho urbano.

Figura 01 – Water Squares – Projeto

Fonte: http://www.urbanisten.nl/wp/?portfolio=waterpleinen Acesso em 25 mai. 2017.

Figura 02 – Water Squares – Execução

Foto: Walter Weingaertner.

 

The River as a Tidal Park – O Rio como um Parque das Marés

“As margens dos rios são uma mistura equilibrada entre natureza e cultura” (De Urbanisten)

Uma característica especial na Holanda é a presença dos canais. O território holandês está, em cerca de ⅖ da sua área, abaixo do nível do mar, o que foi possível através da construção de diques, barragens e canais. Dessa forma, a presença da água na paisagem holandesa é uma constante.

Segundo os arquitetos do grupo “De Urbanisten”, a região de Roterdã possui mais de 360 km de margens de rios; porém cerca de 70% destes são considerados “duros”, ou seja, revestidos com pedras, concreto ou outros materiais, transformando os rios em meros canais de escoamento de água. Apenas 10% das margens podem ser de fato consideradas naturais. Dessa forma, as funções ambientais e sociais são bastante limitadas.

O projeto The River as a Tidal Park (O Rio como um Parque das Marés, em tradução livre), busca redesenhar a transição entre o rio e a cidade. A ideia é trazer a natureza para as bordas, com a reconstrução de margens, da fauna e flora e das condições necessárias para que essa ocorra, como o alimento e abrigo para animais.

Por muito tempo, o rio foi visto apenas como função – transporte, porto, drenagem, por exemplo – o que vem mudando consideravelmente nos últimos 25 anos. Os canais estão sujeitos aos fluxos e refluxos das marés. “O rio precisa de espaço para seu comportamento natural, incluindo cerca de 1,5 a 2m de oscilação”, afirma o Professor Han Meyer, da Universidade Técnica de Delft, “o projeto cria mais condições para a natureza, enfatizando a transição – importante para os ecossistemas naturais – e trazendo áreas recreativas no centro da cidade.”

A união entre a estrutura e a paisagem é uma característica de projetos contemporâneos, em que a paisagem pode ser interpretada como uma nova forma de desenhar a infraestrutura. Taneha Bacchin afirma: “Devemos pensar em benefícios múltiplos com a inclusão ambiental, dentro do escopo de revitalização urbana e de rios.”. Assim, novos projetos devem estar atentos ao desenho de paisagem, que engloba os ecossistemas naturais. Isso traz uma série de vantagens adicionais, como a qualidade da água, do ar, ameniza ruídos, e, consequentemente, vantagens adicionais para os seres humanos. Os benefícios para a saúde física e mental, como atividades esportivas ao ar livre e redução dos níveis de stress, e para as atividades sociais, como oportunidades de lazer e encontro, são inclusive alvo de estudos de economia ambiental. Os estudos colocam valores financeiros como argumentos, em termos de gastos em saúde e de valorização imobiliária, por exemplo – já que, infelizmente, parte da população ainda não reconhece a importância das questões ambientais e sociais.

Figura 03 – The River as a Tidal Park – As margens “duras” dos canais de Roterdã.

Fonte: http://www.urbanisten.nl/wp/?portfolio=river-as-tidal-park Acesso em 25 mai. 2017.

 

Figura 04 – The River as a Tidal Park – Projeto

Fonte: http://www.urbanisten.nl/wp/?portfolio=river-as-tidal-park Acesso em 25 mai. 2017.

 

Room for the River – Espaço para o Rio

O Programa Holandês “Ruimte voor de Rivier”, também conhecido como “Room for the River” (ou Espaço para o Rio, em tradução livre), tem como objetivo dar mais espaço para as águas, para que o próprio rio possa administrar suas águas, em caso de cheias.

A região de Deltas é bastante sensível, tanto do ponto de vista ecológico quanto de pressões humanas para uso e ocupação da costa. Além disso, intervenções a montante se refletem em maior intensidade a jusante. E é na costa holandesa que desembocam três importantes rios: Reno, Maas e Scheldt. “O Reno é bastante urbanizado em toda a sua extensão, e os problemas que a erosão acarreta acabam se concentrando na Holanda”, afirma Han Meyer. “É preciso organizações nacionais que tenham a responsabilidade de gerenciar as águas, e também no nível europeu”.

Após as grandes enchentes de 1993 e 1995, 250 mil pessoas evacuadas, e um contexto de mudanças climáticas, o governo holandês tomou medidas dentro de uma nova abordagem. “É um projeto do ministério que diz “não” para a engenharia tradicional, e diz “sim” para não-obras, para abrir os leitos”, explica Taneha. “Os processos tradicionais de engenharia não são suficientes frente a um cenário de incertezas (como mudanças climáticas) e as experiências recentes nos mostram que precisamos aprender com os processos naturais”.

O Professor Meyer complementa: “Havia políticas públicas para distribuição populacional, porém nos últimos 15 anos, dentro de uma política governamental de não interferir nas liberdades individuais, as grandes cidades estão crescendo novamente e a urbanização está crescendo em áreas de risco. A pergunta é “como podemos manter boas condições de vida e mantermos as pessoas em segurança. É disso que se trata o urbanismo de deltas”.

Em mais de 30 pontos do país, foram tomadas medidas para que o rio possa inundar com segurança. Como cada rio e cada trecho possuem características peculiares, cada solução é desenhada sob medida. A ilustração abaixo apresenta algumas das principais medidas tomadas, como retirada ou relocação de aterros, diques e estruturas.

Mas não é só isso. Há outros valores adicionais que foram trazidos à tona. Um bom exemplo é a cidade de Nijmegen, que ganhou, adicionalmente, um grande parque público em áreas que podem ser, eventualmente, alagadas. No início, a população era contrária, pois havia muitos conflitos de reassentamentos, por exemplo. Mas hoje a população está bastante satisfeita, com o acréscimo de espaços públicos para o lazer e o encontro das pessoas. E encontrar essa combinação entre segurança, bem-estar (econômico e social) e ecologia foi o grande desafio do projeto. “Por muito tempo, consideramos apenas a segurança e a economia. Mas se não prestarmos atenção às questões ecológicas, o delta toma de volta. Nós precisamos encontrar um novo equilíbrio”, afirma Meyer.

“Prestar mais atenção no rio, não apenas como algo perigoso, ou muito importante sob um ponto de vista funcional (porque é um corredor de transporte), mas prestar atenção especialmente nas características naturais dele, na vida ecológica relacionada ao rio, e na maneira que o rio pode desempenhar um papel para o lazer dos cidadãos”, finaliza.

Figura 05 – Room for the River – principais medidas adotadas

Fonte: https://www.ruimtevoorderivier.nl/english/ Acesso em 25 mai. 2017.

 

A Holanda contemporânea lida com as águas em direção a uma integração entre os processos naturais e as necessidades humanas, sejam estas sociais ou econômicas.

O projeto Water Squares mostra uma solução híbrida entre estruturas convencionais de drenagem e novas estruturas que funcionam como paisagismo ou lazer, e que podem ser eventualmente alagadas. Uma solução mais econômica e com menores transtornos para atualizar as estruturas de drenagem – e com ganhos adicionais em qualidade de vida para os cidadãos.

O projeto O Rio como um Parque das Marés se ocupa da renaturalização de rios e bordas, que ao longo dos séculos foram retificadas e fixadas, como uma forma de trazer novamente a natureza para os centros urbanos, ao mesmo tempo em que traz mais áreas recreacionais para as cidades.

O projeto Espaço para o Rio compreende que, em casos de cheias, a solução mais eficiente vem de promover mais espaço para que o rio possa inundar, uma visão quase oposta do que era praticado há algumas décadas.

Para a realidade brasileira, o país mais rico em água e biodiversidade do mundo, e que ainda carece de políticas sociais, os três projetos citados servem como inspiração para um futuro mais sustentável.

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