A modernidade é fluida como um rio
Durante uma viagem ao Uruguai, discutimos com aquele grupo uma passagem do escritor Eduardo Galeano, presente em seu “O Livro dos Abraços”, que descreve a viagem de um pai com o filho, para conhecer o mar. Ao se deparar com a imensidão, o pequeno pede: “pai, me ajuda a olhar”. Se esse filho não tivesse uma ideia do que era o mar, ele não toparia a penosa jornada. Mas assim que o vê, ele se surpreende.
Surpreender-se. Não deveria ser o objetivo de ninguém sair do seu país para confirmar sua visão de mundo, e sim se abrir a novas ideias. Perceber que muito do que achamos “natural” são, na verdade, valores absolutamente culturais, mesmo num mundo globalizado e à distância de um clique.
Eu não toparia largar minha vida no Brasil e vir morar na Alemanha por um ano e meio – uma jornada penosa, se considerarmos que eu tinha uma profissão estabelecida, e num país tropical – se eu não tivesse uma ideia do que eu encontraria na Alemanha. Sou de uma cidade de imigração alemã, que, apesar de não corresponder mais aos valores da sociedade alemã, ainda mantém bastante contato com a Alemanha. Também já estive aqui em outras oportunidades, assim já tinha uma expectativa do que encontrar. Mas durante este ano, eu pude conhecer a Alemanha e os alemães como uma residente, e não como uma simples visitante.
A minha primeira grande surpresa foi a relação com o estrangeiro e a relação disso com os novos valores da sociedade. Mas antes disso, eu gostaria de fazer um paralelo entre os valores da sociedade industrial e os valores da sociedade atual.
A indústria é caracterizada pela sua linha de montagem. O padrão é linear, repetitivo, segmentado e previsível. Uma etapa segue a outra linearmente e assim também são as carreiras profissionais. A repetição leva à otimização dos processos e dos trabalhadores, cada vez mais especializados. Tudo é segmentado e agrupado por funções, tanto nas etapas de fabricação, como também nos departamentos das empresas. Tudo é muito previsível, já se conhece cada uma das etapas e seus resultados. A estética é a estética da máquina. A velocidade é a velocidade da máquina. A escala é a escala da máquina. Funcional, estandardizado, massificado. Esse também é o padrão de comportamento da sociedade industrial. O padrão de vida é repetitivo e previsível. A escolha da profissão era para a vida inteira. A família tinha um formato definido, o casamento duradouro, os filhos, a casa, a aposentadoria. Tudo muito lógico, padronizado e massificado. A diferença não era aceita, muito pelo contrário. O homossexual não era bem visto, a esposa separada não era bem vista, tampouco o casal sem filhos, para ficarmos nos exemplos da família. As pessoas anulavam suas diferenças para pertencerem a um grupo.
A sociedade atual não funciona mais dentro dessa mesma lógica. Uma análise requer distanciamento histórico, mas somos cada vez mais conectados, customizados, multidisciplinares, não-lineares e imprevisíveis. Os padrões consolidados se abriram a novas abordagens (ex: novas configurações de famílias). Somos cada vez mais auto-curadores de informação, de produtos, e isso abriu o caminho para a customização. A individualidade é desejada. Nos nossos tempos, não basta aceitar as diferenças, nós celebramos as diferenças. Esses conceitos já são bem enraizados na Alemanha, ao menos nas relações pessoais.
Voltando ao tópico ‘estrangeiro’. Quando os alemães foram para o Brasil, Blumenau era uma cidade à parte do país, onde as aulas nas escolas eram em alemão, as negociações eram em alemão e os costumes eram os mesmos dos colonizadores imigrantes. A campanha de nacionalização aconteceu dentro da lógica industrial. A ideia central foi eliminar as diferenças, e rapidamente os alemães e descendentes se integraram ao país, neste caso, sua cultura foi engolida pela cultura brasileira dominante na época. Sempre na ideia de tornar padronizado e massificado.
Na Alemanha atual, a imigração e a integração dos estrangeiros – eu incluída, ainda que imigrante temporária – não ocorre mais dentro dos valores industriais. Os valores da sociedade atual prezam pelas singularidades. Todos querem ser únicos. Entende-se a diferença como algo positivo. Hoje, o desafio não é mais desaparecer com as diferenças, mas o contrário: aprender a conviver com elas. A ideia é muito mais viver em comunidade, cada um respeitando as demais individualidades. É preciso destacar a importância dos espaços públicos: lugares que pertencem a todos, onde pessoas de diferentes idades, culturas e backgrounds se reúnem. E eu estou falando de diversidade, mas também de democracia.
O Brasil é conhecido por ser um país multicultural, em que várias culturas formaram a cultura brasileira (claro que há romantismo nessa visão de Brasil, já que as diferenças existem e não são poucas). O multiculturalismo na Alemanha é diferente: você vai ao mercado e ouve várias línguas, muitas das quais você nem sabe identificar. Você anda na rua e vê um restaurante grego, do lado de um italiano, do lado de um japonês. O que não significa necessariamente que o estrangeiro não esteja integrado na Alemanha. Não vi guetos na Alemanha, não da maneira com que os vejo no chamado miscigenado Brasil. Também não acho que um modelo seja melhor do que o outro. São apenas abordagens diferentes.
Ainda dentro da comparação industrial e contemporânea, as instituições na Alemanha funcionam dentro da lógica industrial. Os procedimentos são todos padronizados, repetitivos, lineares, previsíveis. Com a repetição, os procedimentos ficaram muito bons, ágeis, otimizados, eficientes, mas não são à prova de falhas. E a realidade hoje é cheia de exceções. Qualquer situação que esteja fora do procedimento, gera uma impotência de um lado, e um descontentamento muito grande do outro. Nos grupos sociais de que participei, com nativos e com estrangeiros, todos tinham histórias para se queixar. Comecei a receber textos diversos, questionando a famosa eficiência alemã, e eu mesma passei por uma situação de exceção que meses depois ainda não tem solução. Não é que a Alemanha não seja eficiente, os procedimentos atendem quase a totalidade das situações. É que o mundo está mudando o tempo todo, e a velocidade das mudanças não é acompanhada pelas instituições.
Nesse aspecto, o estrangeiro faz bem ao alemão, pois traz uma dose de imprevisibilidade, de mudança. Se a auto-estima do estrangeiro for bem trabalhada – isso significa, se ele não tiver medo de agir conforme a sua cultura – a Alemanha tem um potencial enorme. Se anteriormente era melhor que todos pensassem de forma semelhante, gerando mais agilidade dentro de um padrão, hoje a riqueza vem justamente de cabeças pensando da maneira mais diversa possível, gerando soluções inovadoras.
Mas por que falo tanto da comparação entre a sociedade industrial e a atualidade? Como arquiteta e urbanista, é preciso entender o modernismo como expressão dos valores daquela sociedade e a materialização desses no tecido das cidades. As cidades modernistas foram concebidas de forma monofuncional, cada função separada fisicamente: morar, trabalhar, circular e recrear. A velocidade da cidade passou a ser a velocidade da máquina, do automóvel, e logo a escala deixou de ser uma escala humana. Por exemplo: quando caminhamos por uma rua, as fachadas curtas e cheias de detalhes são muito atraentes (cidade antiga), enquanto se passarmos de carro, as fachadas podem ser mais longas e sem detalhes (cidade modernista). Outro ponto foi demonstrar a capacidade técnica de usar a natureza e de controlar a natureza. Essa lógica industrial criou habitats sem vida, sem convívio social. A cidade virou um aparato de interligações viárias de núcleos funcionais isolados.
A revisão desses valores nas cidades já acontece de forma muito avançada na Alemanha. Vim para o país em busca de novos parâmetros para substituir padrões tão primários, como largura das avenidas e altura dos edifícios, que ainda significam modernidade para grandes parcelas da sociedade brasileira.
E aqui vem a minha segunda grande surpresa: como as cidades alemãs são conectadas com a natureza! Eu já havia experimentado o aconchego dos centros antigos das cidades e também já havia pedalado de bicicleta pela Alemanha e feito alguns caminhos de “wanderung”. Também já conhecia o conceito de renaturalização de rios. Portanto, eu já tinha uma ideia do que encontraria por aqui. Mas o que eu vi foi muito além disso. Primeiramente, na escala. Há uma quantidade enorme de caminhos para passeio, exclusivos para pedestres e ciclistas. Bonn e Munique, cidades onde morei, são muito conectadas através desses caminhos, inclusive dentro dos centros urbanos. Pode-se passar por dentro de parques para ir tranquilamente entre pontos distantes da cidade. E também a quantidade de pequenos bosques para passeio. Depois, como isso é uma característica especialmente alemã. O cidadão alemão se mobiliza por um modelo de cidade mais agradável para as pessoas, com mais qualidade de vida, com mais respeito a outras formas de vida. Passei pela Holanda e Dinamarca durante o Europe Stay. Morei em cidades mundialmente conhecidas pela qualidade de vida e pelo planejamento urbano. Foram experiências belíssimas nesse sentido. Mas a junção de cidade e natureza é uma característica bem alemã.
É bastante claro como a Alemanha já virou a página e incorporou os valores atuais nas cidades. Na nossa modernidade, a vida é dinâmica. As formas de trabalho, de relacionamento, enfim, o nosso habitat é muito mais flexível e imprevisível. Assim também é a natureza. Assim também são os rios, meu objeto de estudo. Nós estamos mudando de um modelo de controle artificial da natureza para um modelo de adaptação e parceria com a natureza. Os rios, antes retificados e concretados, ou seja, controlados e otimizados em favor de necessidades funcionais, estão cada vez mais livres. A solução contemporânea é dar mais espaço para os rios e ribeirões, melhorando o controle de enchentes, a biodiversidade e os espaços públicos para os cidadãos. Afinal, se o mundo já não é mais fixo, por que as margens dos rios deveriam ser?
A terceira grande surpresa vem da população, em termos de entendimento sobre o público, a natureza e engajamento comunitário. Coloco os três aspectos juntos, porque todos se referem à relação sociedade e planejamento urbano. Tudo o que é público é bastante controlado pelas pessoas. Há um grau de compreensão maior da importância que estes equipamentos têm, no sentido de serem de todos nós. Tudo o que diz respeito à natureza tem um peso enorme nas decisões. E como a população se une para defender o coletivo.
O Brasil tem leis muito mais avançadas em termos de participação popular, porém a população não é empoderada para lutar pelos interesses coletivos. Já na Alemanha, eu frequentei várias reuniões de planejamento participativo, e um aspecto foi comum a todas: a massiva participação de gente que não estava lá para defender os interesses da empresa ou dos seus negócios, mas os interesses da preservação da natureza e da qualidade de vida.
Talvez seja este o grande aprendizado que estou levando: tudo o que envolve estes dois interesses é muito forte aqui. A preservação é uma preocupação básica, urgente, mais do que o entendimento da necessidade de espaços públicos. Nas reuniões sobre os rios, a questão ambiental fica acima do que o seu uso pelas pessoas, mesmo em áreas urbanas. E em segundo lugar vem a qualidade de vida.
As cidades estão constantemente ficando mais amigas da bicicleta, mas amigas da natureza, com mais áreas de lazer, com mais parques, com mais áreas de preservação. As comunidades, e em especial as novas gerações, reconhecem o valor deste esforço aproveitando esta nova forma de usufruir do espaço público, espaços nobres para a convivência, o lazer e a reflexão. Isso é especialmente importante nos nossos tempos, em que o trabalho é muito mais do que a mera repetição e, assim, precisamos de espaços adequados para a reflexão.
Mesmo com a indústria do carro e do motor sendo economicamente vital para o país, e mantendo um poderoso lobby, a população alemã preza muito pela preservação. Desde a década de 1970, assuntos em favor da proteção do meio ambiente estão na pauta. A preocupação ecológica já é consolidada na Alemanha. E já está na frente de muitas outras coisas. Inclusive confortos materiais, ou o uso humano do rio. O povo alemão entendeu que o bem-estar e a qualidade de vida do futuro não estará atrelado só à tecnologia a à inovação, mas também à capacidade de conviver em harmonia com o mundo natural que nos cerca.
Tudo o que é público é bastante controlado pelas pessoas e há um grau de compreensão maior da importância que estes equipamentos têm, no sentido de serem de todos nós. Tanto no sentido físico dos espaços, como no sentido abstrato. Todos são “ricos”, porque a estrutura pública garante uma boa qualidade de vida a todos. Ninguém precisa pagar um clube privado, ou viver em caros condomínios privados que oferecem infraestrutura. A cidade já oferece parques, ciclovias, uma rede de transporte público, calçadas e trilhas.
Da mesma forma, as pessoas estão muito atentas às regras de ocupação do espaço nas cidades, seja no espaço público ou nas construções privadas. Antes de vir para a Alemanha, eu achava que as regras no país eram muito mais elaboradas, e que as empresas do ramo imobiliário não tinham, legalmente, como influenciar as decisões e legislações. Porém, são as mesmas pressões que temos no Brasil. E as regras não são melhores – em muitos casos, são até piores. O Brasil tem um conjunto de instrumentos muito poderoso, que não encontra correspondente na Alemanha. Só que a população na Alemanha é muito mais preocupada com o coletivo.
Uma cidade como Munique, por exemplo, tem uma demanda muito grande por moradias. Como não há edifícios altos de apartamentos, como são construídos tantos parques em regiões abandonadas em vez de moradias, como a cidade não é sufocada por edificações? Bem, eu soube que torres de habitação não são bem vistas, pois remetem à habitação popular. Mas não é só isso. A legislação até permitia torres altas, mas a população decidiu, em plebiscito, que a altura máxima não poderia passar da altura das torres da igreja. É a preocupação com a paisagem! Eu nunca vi esse entendimento de paisagem na população no Brasil. Isso é raro até mesmo entre profissionais da área.
Ainda não vi no Brasil a população comum defendendo mais áreas verdes para melhorar a drenagem urbana, proteção de matas ciliares, proteção de nascentes. Entre especialistas sim, mas não entre a população. Os alemães não conseguem entender como os brasileiros preferem um modelo de rio concretado – eu digo preferem porque eu me refiro a termos estéticos – a um rio natural. Também não entendem como a população continua defendendo um modelo de mobilidade urbana baseado no transporte individual motorizado, quando a maioria sequer tem condições financeiras adequadas para comprar e manter um carro, enquanto as calçadas, as ciclovias e o transporte público são desprestigiados. Tampouco compreendem como a população não exige pautas que revertam a desigualdade espacial e defendem pautas que beneficiam certos grupos, dos quais a maioria não faz parte. E não entendem como a população mantém essa estrutura de poder político que defende causas que não são para a maioria.
Eu, como brasileira e com um olhar de fora, compreendo o processo histórico que levou a isso. Espero que cada vez mais brasileiros conheçam a Alemanha, mas não para confirmar o que acham do país, mas para se surpreender e questionar. E que cada vez mais alemães conheçam outras realidades (não apenas em viagens de consumo, o que já fazem bastante), mas em vivências mais qualificadas. Para que ambos, brasileiros e alemães, não aceitem mais as coisas sem maiores reflexões. Para abandonar a submissão às ideias pré-estabelecidas.
Toda cidade é um produto da sua sociedade. O empoderamento da sociedade se reflete na cidade. Os novos valores, de uma sociedade mais dinâmica, se refletem na cidade. Em tempos que se fala de democracia, cultura, singularidades, diversidade e sustentabilidade, como é a cidade do nosso tempo?
Acredito firmemente que podemos mudar o modelo para a coexistência com os ecossistemas naturais. O urbanismo é uma mistura de natureza, tecnologia, tradições e sentimentos. Junto com a humanização e revitalização de áreas centrais com suas singularidades e herança cultural, os rios são uma peça importante na equação: eles são a conexão entre a natureza e os centros urbanos.
Espero ter contribuído com a Alemanha durante minha estadia no país, com um olhar descondicionado. Assim como cada um que passa por aqui e traz a sua bagagem cultural, modifica a realidade estabelecida e constrói uma nova realidade. Como disse um dos meus entrevistados: “A vida é como um rio. Não tem volta. Só ida.”